vinteesete

13 março, 2006

vinte e seis de janeiro de dois mil e seis – casa quatro - vitória

Deus bem poderia revisar a Bíblia. E colocá-la, outra vez, numa boca qualquer. Gritada na rua às três da tarde ou da manhã, tanto iria fazer, ninguém ouviria mesmo até que outro morresse. Mas que fosse gritada por uma boca com cheiro de álcool, numa quarta-feira de show no parque. Os loucos chorariam de alegria, pensando que aquilo era Deus: enfim um tipo de verdade que fazia rir, sem culpa, sem peso: leve como um suflê. Com muito de tudo que é bom, sem adoçante ou bifes de soja. Uma bíblia que explicasse o sexo e como ganhar dinheiro sem perder a alma. Que nos dissesse o porquê de tão pouco tempo de corpo e o que acontecerá com o nosso coração. Que nos ensinasse a cantar, jogar, e chamar mais atenção que os outros quando precisássemos. A mulher feia aprenderia a ser charmosa e se casaria com um gordo que a amaria eternamente – se é que eternamente cabe em corações, enfim... Só saberíamos se Ela nos ensinasse! Se isso não for um desses erros de querer demais?!!! Talvez seja. Se fosse importante, Deus pediria a qualquer que a escrevesse. Pois seu predileto, Jesus, que fugiu muito cedo de casa, não teve tempo para aprender ler e escrever, só contar estórias confusas, tão confusas quanto a velha Bíblia.


j. gauche

De como Deus lambe o copo

Ontem encontrei Deus tomando um conhaque no bar do Kim Caveira. Olhou pra mim como se sentisse reconhecido, deixando um meio sorriso transparecer nos olhos avermelhados e pouco visíveis. Sentei à sua frente, olhando-o com o carinho de quem surpreende um velho amigo longe de sua rotina. E esperei que ele tomasse outro trago:
- Como me descobriu? – ele me perguntou depois de pousar o copo sobre a madeira gasta da mesa.
- Pelas marcas de nuvens carmins nos dedos - respondi sem respirar – é a mesma cor que o Senhor usou hoje, na tarde.
- Pois é! Ainda bem que não tem muitos poetas por aqui, senão, estaria fudido. Aceita um conhaque?
- Só se o senhor prometer que não vai deixar minha úlcera doer depois.
Ele riu, e fez sinal ao caveira para que nos trouxesse novas doses.
- Desde que você não misture com cerveja... – e vez um gesto ébrio de benção.
- Você continua só pintando? – perguntei.
- E coçando o saco – disse rindo depois de secar seu copo. E acrescentou – Jesus cuida dos negócios esplendorosamente bem. Já não é mais aquele revolucionário sonhador e romântico de milênios atrás. Caralho!, até hoje ainda tenho que ouvir reclamações a respeito de promessas absurdas que ele fez à esse povo inocente. Agora ele aprendeu que essa coisa de satisfazer vontades de pessoas que não sabem o que querem é trabalho de outros departamentos: prefeituras, igrejas, inferno...
Caveira aproximou-se com as bebidas. Passou um pano úmido para tirar o excesso de marcas de água deixadas pelo copo de Deus e saiu cantarolando um reggae.
- Deus, porque que o céu é azul?- perguntei depois de sair da cara feia, provocada pelo o conhaque que desceu me queimando.
Ele riu com a boca ainda cheia, fazendo esforço para não cuspir, sorveu o líquido com paciência e voltou-se pra mim com candura:
- Engraçado!, ontem um coelho me fez a mesma pergunta. Só que em vez de azul, rosa choque.
- Rosa choque?!!!
- É, os coelhos são meio gays.
- E os padres também, né? – acrescentei às gargalhadas.
- O pior é que é! – ele consentiu com certo constrangimento.
Uma negra muito bonita se aproximou dele e cochichou em seu ouvido algo que o fez corar:
- Eu também te amo, mas se você beber mais , vai...
E lhe falou em surdina alguma coisa que deu à ela uma expressão de arrependimento e angústia. A negra nos deixou cabisbaixa e ganhou a rua com uma velocidade parecida com o desespero.
- Veja bem – recomeçou – para me poupar trabalho, eu criei tudo com seu próprio sistema de criação. Então é só da corda que as coisas avançam em princípios parecidos com os meus. Assim, tudo que você vê, é a repetição de um eco que vaga em suas entranhas desde o sopro primordial. Mas tem um detalhe, os outros não vêem o que você acha que está transmitindo. Nisso Eu fui sacana. Há um borrão nos olhos, quase todos, que transfigura a imagem emitida, é uma espécie de ilusão, assim, o que se vê, geralmente, é o contrário do que é na verdade. Entendeu?
- Não.
- Os negros, a maioria, são pessoas muito claras; os anões, são grandes homens...
- E o céu então é vermelho? – eu disse, fazendo cara de quem descobriu o segredo de todos os mistérios.
- Seu problema é que você não sabe beber! Confunde-se à-toa. É claro que o céu não tem cor.
- E essas marcas carmins no seu dedo então?
- Puta que pariu! Como você é burro. Não tá vendo que minhas mãos são de pintor porque você não sabe pintar. Tudo que não se pode ter parece divino. O homem sempre criará seus céus e infernos a partir de seus medos e desejos. No paraíso dos evangélicos tocará hinos o tempo todo, no seu inferno também... Compreendes companheiro!
- Então por isso que o Stephen Hawking é feio daquele jeito? Só porque é mais inteligente que todo mundo?
- Não. Aquilo é uma sacanagem que fazem com o coitado. Há muito tempo que ele não passa de um monte de carne torta que não consegue reagir a nada. Mas uns ingleses que não querem ser responsáveis por tanta informação insegura, insistem em usá-lo como testa de ferro, assim como os católicos fazem com o Papa. Se os infelizes pudessem gritar...
- E você permite isso assim!
- Se eu interferisse, o Hawking morreria por não conseguir pedir esmolas e o Papa... é um castigo mesmo, ser conivente com um sistema daqueles!, vê se pode?
- Porra Deus, o Senhor é foda mesmo! Me paga outro conhaque.
- Só se prometer que não vai dizer nada do que te falei aqui. Ou então sua úlcera nunca mais melhorará. Promete?
- Claro! Sou seu fã.
- Oh Caveira! Mais dois conhaques por favor!
- Com gelo e limão? - perguntou Kim Caveira em sinal de prontidão.
- Que merda!- resmungou Deus – ele parece que quer testar minha paciência. – e depois num tom alto e cheio de graça - Não, meu filho, purinho, purinho!



j. gauche